Fiat iustitia, pereat mundus – voluntarismo político e páthos messiânico no neoesquerdismo atual - Richard Romeiro Oliveira

Fiat iustitia, pereat mundus – voluntarismo político e páthos messiânico no neoesquerdismo atual.
Richard Romeiro Oliveira
(Professor de Filosofia da UFSJ)
“Nada é mais cretino e mais cretinizante do que a paixão política. É a única paixão sem grandeza, a única que é capaz de imbecilizar o homem”.
Nelson Rodrigues.

Idealização de um mundo perfeito. Revolução social.
Entende-se, de um modo geral, por neoesquerdismo, ou Nova Esquerda, o complexo fenômeno (originado em meados do século passado) da rearticulação e reorganização dos movimentos de esquerda no Ocidente, por meio da adoção de um novo e amplo programa de ativismo social, o qual é diretamente derivado de um trabalho de reformulação teórica da doutrina marxista primitiva que, assentado numa percepção menos ingênua da natureza complexa da história humana e do lugar privilegiado nela ocupado pela cultura, modificou a compreensão dos alvos a serem atacados pelo exercício da militância política e intelectual. De fato, o esquerdismo clássico, mantendo uma fidelidade inconcussa às linhas gerais do marxismo ortodoxo e aos pressupostos  economicistas de sua vulgata, concentrou o essencial de seu engajamento histórico na esfera  das relações de trabalho ou de produção, agarrando-se obstinadamente, no desenvolvimento desse seu engajamento, a duas concepções fundamentais que inspiraram e alimentaram os exaltados vaticínios de Marx acerca do advento da futura sociedade comunista, quais sejam: por um lado, a ideia da iminência e da inevitabilidade do processo revolucionário que, eclodindo violentamente como luta armada contra o Estado e os poderes instituídos, varreria de vez da história a iniquidade, a alienação e a injustiça associadas à ordem do capital; por outro, a tese de que esse processo revolucionário iminente e inevitável, que envolve a eclosão  de uma luta armada contra o Estado e os poderes instituídos, seria desencadeado pelo acirramento do antagonismo mortal existente entre trabalhadores e proprietários dos meios de produção, ou, por outra, entre proletários e capitalistas.  Desta forma, assumindo tal orientação e levando às derradeiras consequências a visão marxista do proletariado como a verdadeira classe revolucionária de nosso tempo e, portanto, como única classe capaz de levar a efeito a verdadeira emancipação humana e universal, vale dizer, a emancipação social que, por oposição à mera emancipação política promovida pelas revoluções burguesas anteriores, produzirá a verdadeira reconciliação da humanidade consigo mesma,[1] o esquerdismo clássico fez, grosso modo, da mobilização da classe operária, do ativismo sindical e trabalhista e do ideal da luta armada o fulcro primevo de sua militância, considerando como algo de secundário ou de somenos importância todos aqueles fenômenos e elementos tidos como pertencentes à esfera da superestrutura ideológica da sociedade (a religião, a educação, a moral, os costumes, os valores, a arte, a psicologia –  enfim, tudo aquilo que hoje se concebe como pertencente ao âmbito da cultura, entendida esta na sua acepção meramente sociológica).
Livro: Pensadores da Nova Esquerda -
Roger Scruton
Ora, a emergência da Nova Esquerda está intimamente vinculada a um  esgotamento desse modelo tradicional de ativismo esquerdista (centrado, como dissemos, no engajamento trabalhista ou sindical, na crença na inevitabilidade do evento revolucionário, na valorização da luta armada e no desprezo pela esfera da cultura) e ao desenvolvimento de uma compreensão menos ingênua e, por que não dizer?, mais elaborada acerca da complexidade constitutiva do processo histórico, compreensão essa que reconhece a influência substancial da cultura e de seus mecanismos no funcionamento da sociedade e  que rechaça como teoricamente obsoleto o reducionismo economicista que havia inspirado o engajamento e a atuação histórica da velha esquerda.

Conforme já foi notado por diversos analistas, em nosso país e alhures,[2] nessa renovação do esquerdismo tradicional, cumpre, sem dúvida alguma, um papel crucial a releitura do pensamento de Marx operada por Antonio Gramsci, militante esquerdista da primeira hora e fundador do Partido Comunista Italiano que, através da elaboração de sua teoria da hegemonia, constituída a partir de uma polêmica com o marxismo vulgar de Nicolai Bukharin, identificou a natureza mais insidiosa por meio da qual se dão a manutenção e a perpetuação da ordem social capitalista, reconhecendo a função decisiva e indubitavelmente essencial dos chamados aparatos ideológicos (igrejas, escolas, associações, imprensa, órgãos de informação etc.) em tal processo. [3] De fato, segundo Gramsci, a vigência da ordem capitalista e o poder da classe burguesa que lhe é inerente são garantidos não apenas pela “dominação direta” ou ostensiva exercida pelo Estado através de seus mecanismos jurídicos e policiais coercitivos (como julgava o marxismo vulgar), mas também, de maneira mais sutil e dissimulada, por meio dos aparatos ideológicos acima mencionados, que constituem o âmbito do que o autor italiano chama de “sociedade civil” – conceito que, como se sabe, pertence originalmente ao arcabouço teórico da filosofia hegeliana do direito e do qual Marx se apropriou para designar a esfera das relações econômicas ou de produção,[4] mas que com Gramsci adquire uma significação radicalmente distinta, servindo para representar o universo das instituições e instâncias não governamentais por onde circulam as ideias, crenças, valores e opiniões que, ao se tornarem hegemônicas e conquistarem ascendência sobre a consciência coletiva, asseguram, num plano espiritual e simbólico, a permanência de um dado establishment social. N. Bobbio ressalta da seguinte forma a modificação decisiva introduzida por Gramsci no significado do conceito de sociedade civil em relação à concepção marxista tradicional:
[...]a teoria de Gramsci introduz uma profunda inovação em relação a toda tradição marxista. A sociedade civil, em Gramsci, não pertence ao momento da estrutura, mas ao da superestrutura [...] a sociedade civil compreende, para Gramsci, não mais  ‘todo o conjunto das relações materiais’, mas sim todo o conjunto das relações ideológico-culturais; não mais ‘todo o conjunto da vida comercial e industrial’, mas todo o conjunto da vida intelectual e espiritual. [5]

Antonio Gramsci.
 Ora, na ótica gramsciana, é  graças precisamente à hegemonia ideológica e cultural conquistada no espaço da sociedade civil que a classe burguesa obtém o “consenso” em torno de sua mundividência fundamental, “consenso” que lhe permite então difundir a imagem da dominação política por ela exercida como um fenômeno legítimo e, portanto,  digno de ser mantido, aceito e respeitado. Isso significa, de acordo com a análise gramsciana, que os aparatos ideológicos da sociedade civil não representam meros epifenômenos de caráter secundário que, como tais, seriam  simples reflexos ou efeitos passivos da infraestrutura econômica da sociedade, como pretendiam os adeptos de uma leitura mais crassa e, no fim das contas, simplória do materialismo histórico tradicional. Ao ver de Gramsci, a situação é mais complexa e verdadeiramente dialética, pois, se há uma dependência dos aparatos ideológicos da sociedade civil em relação à estrutura econômica, é preciso admitir, ao mesmo tempo, que a estrutura econômica e todo o arranjo de classes a ela associado dependem, por seu turno, dos aparatos ideológicos em questão, pois é desses aparatos que se originam o consenso social e a sanção simbólica sem os quais eles não poderiam se perpetuar. [6] É esse fenômeno – cujo funcionamento básico pode ser interpretado, nos quadros da teoria gramsciana da hegemonia, como um perverso mecanismo de cooptação e agenciamento das consciências – , que explica, segundo o autor italiano, a passividade e o misterioso conformismo da classe trabalhadora diante de uma ordem social sentida como intrinsecamente opressora e injusta, passividade e conformismo que garantem a extraordinária resiliência e capacidade de perpetuação do capitalismo, permitindo que esse sistema, mesmo em situações de crise profunda, consiga se manter e se preservar, neutralizando o risco de uma revolução iminente. A lição que a teoria gramsciana da hegemonia pretende extrair da identificação desses elementos é que a práxis revolucionária não pode mais se contentar, pois, com o simples ativismo trabalhista e com a crença no advento histórico inevitável do socialismo, mas deve invadir decididamente a esfera cultural e institucional, fazendo da luta política e intelectual travada pela hegemonia ideológica nos âmbitos das escolas, das igrejas, das associações, dos jornais e dos demais meios de comunicação um procedimento indispensável para a tomada do poder e a consequente subversão do establishment em vigor. Em outras palavras, a atividade revolucionária não precisa se fazer de maneira abertamente violenta e através das armas materiais; ela pode e deve se efetuar de forma mais sutil e insidiosa, como batalha espiritual ou de ideias, tendo em vista o controle e o aliciamento da consciência humana.
Pode-se dizer que a releitura da Weltanschauung marxiana levada a cabo por Gramsci injetou novo fôlego no organismo exangue e moribundo do marxismo tradicional, abrindo novas perspectivas de pensamento e de atuação histórica para intelectuais e  ativistas que se encontram, de uma maneira ou de outra, na área de influência do esquerdismo. Mais concretamente, as teorias gramscianas provocaram uma alteração radical da metodologia ou do modus operandi da militância socialista, fazendo com que essa absorvesse em si uma nova agenda e um novo programa de ação destinados a interferir de forma substancial nas mais diferentes esferas  da vida cultural e social.  Tal renovação do marxismo, que abriu espaço, em seu interior, para a crítica da cultura, dos costumes e das instituições, engendrou um curioso fenômeno filosófico, que, por nos permitir observar com maior clareza o perfil intelectual singular assumido pela Nova Esquerda em face do esquerdismo tradicional, vale a pena ser registrado aqui. Estamos falando da insólita apropriação feita pelo neoesquerdismo do século XX da obra de Nietzsche. Com efeito, como já foi notado, percebe-se, no espírito da Nova Esquerda, a presença de um nietzscheanismo latente e difuso, quando não explicitamente declarado.[7] Trata-se aí de um fato no mínimo estranho, esse que responde, como diz A. Bloom, pela nietzscheanização da esquerda (Nietzscheanization of Left), de vez que Nietzsche foi,  como se sabe, ao longo de sua carreira, um contestador implacável das ideias socialistas, anarquistas, democráticas e igualitárias, definindo-se, assim, como um pensador que, do ponto de vista estritamente político, recusou a modernidade e esposou uma forma radical de liberalismo aristocrático.[8] Mas tal fato, apesar de sua estranheza inicial, se explica muito facilmente pela seguinte razão: enquanto na obra de Marx a cultura não é objeto de uma abordagem mais sistemática e aprofundada, constituindo, pelo contrário, um assunto marginal e secundário, ao qual o autor alemão dedicou apenas algumas notas esparsas e considerações fragmentadas, o mesmo não ocorre com Nietzsche, que desde o princípio de sua carreira filosófica viu na dimensão cultural um objeto privilegiado de  reflexão (ao lado da história), [9] elaborando toda uma crítica da cultura burguesa moderna como cultura da decadência, da vulgaridade e do niilismo, cujo produto mais acabado é o tipo humano  desprezível e ignóbil chamado por ele de “último homem”. Ora, na medida em que a Nova Esquerda, no que diz respeito à sua orientação teórica mais geral, pretende fazer da crítica e da contestação da cultura e das instituições burguesas, nas suas mais diferentes manifestações, o eixo básico da sua militância intelectual e política, ela encontrou em Nietzsche, inequivocamente, uma fonte poderosa de inspiração.
De qualquer forma, os efeitos práticos dessa reformulação teórica do marxismo, que possibilitou uma curiosa aproximação entre Marx e Nietzsche e a consequente “nietzscheanização da esquerda”, puderam ser vistos de maneira mais explícita e radical principalmente a partir dos anos 1960, com o advento da contracultura e com a eclosão dos movimentos negro, feminista, estudantil, ambientalista e de luta pelos direitos civis. Esse novo ativismo de esquerda, impulsionado pelo que veio a ser conhecido como marxismo cultural e pela rejeição, de um modo geral, da referência histórica do socialismo real, representado, à época, principalmente pelo totalitarismo soviético e pelos países do Leste Europeu que funcionavam como satélites do governo de Moscou, pretendeu atacar implacavelmente todas as esferas da cultura tradicional – da moral sexual e familiar à arte e à religião, passando pelos currículos escolares, pelos métodos pedagógicos, pelos costumes e pelos códigos jurídicos –, visando com isso solapar os principais valores que, há séculos, têm alicerçado a civilização ocidental, valores tidos pelos neoesquerdistas como retrógrados, reacionários e essencialmente opressivos.
Com momentos de maior ou menor intensidade, com suas cheias e vazantes, tal neoesquerdismo atravessou as mais diferentes vicissitudes históricas e logrou se perpetuar até os dias de hoje, em que, alijando convenientemente a um plano secundário as hecatombes, flagelos e atrocidades provocados no curso do tempo pelo socialismo real e por seu élan utópico sanguinário, encampou a agenda progressista radical mais hodierna, pretendendo se arvorar em protagonista inconteste da liberdade, das causas justas e de todos os avanços sociais. De qualquer forma, não obstante a especificidade de suas estratégias de militância política e as novas pautas de contestação que assume, pode-se dizer, porém, que, no que diz respeito à sua inspiração moral mais básica ou profunda, a onda neoesquerdista contemporânea não rompe com o espírito original do esquerdismo primitivo, mas simplesmente  prolonga e  submete esse espírito a uma espécie de aggiornamento, na medida em que mantém o mesmo furor jacobino de transformação da história e de libertação dos oprimidos que o animou. É o que viu muito bem R. Scruton, ao avançar as seguintes observações:
Não se poderia pensar, contudo, que a Nova Esquerda representa uma advertência inadvertida. Pelo contrário, é simplesmente a mais recente explosão de uma força proeminente na política desde 1789. O intelectual de esquerda é tipicamente um jacobino. Acredita que o mundo é deficiente em sabedoria e justiça e que a falha reside não na natureza humana, mas nos sistemas  de poder estabelecidos. Ele se opõe ao poder estabelecido, como defensor da ‘justiça social’ que retificará a antiga queixa dos oprimidos.[10]

 No que tange ao seu éthos inspirador, o novo ativismo de esquerda é, portanto, tributário do mesmo páthos de destruição dos poderes instituídos e de revolta contra a  injustiça e a iniquidade do mundo que impulsionou, como um poderoso e subjacente móbil moral,  o marxismo clássico ou original, páthos esse cuja gênese, como observa Scruton, pode ser remontada seguramente ao movimento jacobino de 1789 que, com seu republicanismo extremado e sua ânsia de justiça e de virtude a qualquer preço, exacerbou e radicalizou o processo revolucionário em França, inaugurando a fase mais cruel e sanguinária da revolução que convulsionou a face daquele país: a fase do Terror. Ora, pode-se dizer que esse furor jacobino, presente tanto na Nova Esquerda quanto no esquerdismo primitivo, nada mais é do que a expressão virulenta e enragée do mais perigoso voluntarismo político, o qual se manifesta diretamente, no plano da práxis, como desejo prometeico e revolucionário de “mudar o mundo” e alterar violentamente o curso da história, no intuito de romper os grilhões que aprisionam os homens a um regime injusto, vicioso e maligno.  Brandindo, assim, como se fora uma espada sagrada e purificadora, palavras de ordem como “igualdade”, “justiça social” e “inclusão”, entre outras, tanto os neoesquerdistas de hoje quanto os esquerdistas de antanho assumem a posição de juízes soberanos da história universal e, galvanizando as massas atônitas que lhes dão ouvidos,  investem sem complacência – e, no mais das vezes, desvairadamente – contra um estado de coisas que veem como intrinsecamente mal e iníquo, em nome de uma utópica sociedade futura em que reinarão, enfim, entre os homens, a fraternidade, a paz, a justiça e a igualdade. Como o velho imperador, o militante de esquerda de todos os tempos pode, assim, clamar em alto e bom som: “Fiat iustitia, pereat mundus” e, aspirando à subversão do status quo, trabalhar pelo advento do novo homem e da nova sociedade.
Não há como não perceber nesse espírito voluntarista e prometeico que inspira o esquerdismo nas suas mais extremas manifestações um fascínio lúgubre e inequívoco pela violência e pela destruição como métodos de transformação da história e de construção do “novo homem” e da “nova sociedade” à qual ele pertenecerá. Essa faceta sinistra dos movimentos de esquerda, que se expressou com mais radicalidade na esquerda primitiva, mas que não está inteiramente ausente da Nova Esquerda, foi bem apreendida por J. F. Mattei, que a formulou magistralmente da seguinte forma:
Negando a qualidade de homem ao inimigo de classe, entidade tão ilusória quanto o inimigo de raça, destroem-se sem problemas de consciência os homens reais em benefício do homem comunista, uma entidade tão virtual quanto a precedente, visto que o comunismo só será alcançado no fim da história. Sacrificam-se opositores ao novo Moloch da humanidade reconciliada, uma humanidade com fachada não de touro, mas de granito. Estamos aqui em presença de uma barbárie ativa já que, no comunismo, o entendimento guia as pulsões do instinto legitimando o terror de massa por meio de um discurso racional feito em nome da humanidade. Em vez de escravizar, deportar e executar em nome da força e da raça, o partido escraviza, deporta e executa em nome do conceito e da classe, em outros termos, uma vez que o sujeito comunista se investiu de sua humanidade, em nome de todo o gênero humano [...] Nesse sentido, a predição de Marx, na 11ª. Tese sobre Feuerbach, se confirmou: em vez de interpretar o mundo, para experimentar a inteligibilidade dele a partir de seus princípios, a filosofia deve transformá-lo, quer dizer, fazer da própria filosofia um instrumento de produção de um mundo que nascerá sobre a destruição do mundo existente. Segundo a observação de Alexandre Wat, poeta polonês encarcerado em 1940 mesmo sendo comunista desde 1928: “Sobre o que repousa a fé comunista? Sobre a necessidade de arrancar todas as raízes da ordem existente, de destruir-lhe os fundamentos. Para construir o novo, é preciso arrasar todos os sustentáculos do mundo antigo”. Não é o Gulag e sim a morte que ronda a revolução marxista a partir do momento em que sua filosofia da vida transfere toda a energia e toda a astúcia da razão para o lado da destruição a fim de chegar ao seu objetivo: uma humanidade reconciliada abstratamente consigo mesma sobre os cadáveres dos homens reais carregados com indiferença pelo curso da História.[11]

 Essa longa citação de Mattei põe a nu, assim, um importante fenômeno psicológico, que parece ser ínsito  ao esquerdismo radical, a saber: o fato de que o desejo de destruição e o fascínio pela violência são, nele, de certa forma, paixões que insuflam seu voluntarismo político e de inspiração jacobina.[12] É verdade que, no âmbito do neoesquerdismo atual, esse páthos da violência e da destruição, de procedência jacobina, foi drasticamente atenuado, levando a um aparente abandono dos métodos revolucionários mais radicais de transformação da sociedade e a uma consequente aceitação dos procedimentos formais e regulares do estado democrático de direito, a ponto de se falar hoje em dia de um “socialismo democrático”. Com efeito, conforme vimos antes, seguindo as lições de Gramsci, o neoesquerdismo põe de lado os métodos da luta armada e da revolução violenta, para se concentrar numa forma alternativa de ativismo que privilegia a batalha ideológica travada na esfera da sociedade civil e no plano das ideias, dos valores e dos comportamentos. Mas, a nosso ver, essa alteração de estratégia ou do modus operandi não significa, de maneira alguma, que as paixões anteriormente mencionadas tenham sido suprimidas do espírito do esquerdismo contemporâneo: pelo contrário, é correto pensar que elas continuam vivas no núcleo mesmo da militância política e intelectual da Nova Esquerda, uma vez que esta preserva em si a revolta contra a ordem vigente e o desejo de destruí-la como uma inspiração básica para seu engajamento e radicalismo ideológico. Trata-se, pois, apenas de uma modificação formal, que altera a maneira de dar vazão ao desejo jacobino de mudar o mundo, mas que preserva a essência mesma de seu espírito. É preciso, sem dúvida, pôr abaixo o establishment e lançar fora os velhos valores que o sustentam – mas deve-se fazer isso paulatinamente e através dos mecanismos políticos e institucionais propiciados pela própria democracia: eis aí o que parecem ser o pensamento oculto ou a intenção críptica subjacente à atuação de muitos homens de esquerda contemporâneos. 
Seja como for, seria ainda possível pensar que os elementos que indicamos acima, relacionados ao jacobinismo e ao páthos da violência e da destruição inerentes à militância e à atuação esquerdista, são o reflexo de um furioso fanatismo moral que parece coevo a todo e qualquer esquerdismo, fanatismo moral que dá ao intelectual de esquerda a convicção alucinada de ser o portador do monopólio da justiça e do bem em questões de natureza política e social, estimulando o radicalismo ideológico que mobiliza suas diferentes práticas e discursos contra a ordem vigente. Temos aí, inequivocamente, na existência desse fanatismo moral que habita o âmago do espírito voluntarista e prometeico do esquerdismo, mais um fenômeno paradoxal, pois, como é fartamente sabido, um dos elementos mais recorrentes na retórica política exercitada pelos ativistas de esquerda é justamente a negação peremptória da existência de uma moralidade substancial, universal e dotada de validade intrínseca, negação derivada por eles da mera constatação empírica ou sociológica da multiplicidade das culturas e dos valores e que leva necessariamente à assunção do mais radical relativismo moral, desembocando na consequente defesa da tolerância indiscriminada em relação a todos os tipos de códigos, condutas e princípios como única atitude axiologicamente legítima.[13] Há, aqui, uma extravagante e patente incoerência, pois se por um lado os intelectuais e militantes esquerdistas assumem o mais feroz relativismo moral, negando abertamente a existência de uma moralidade universal e substancial, por outro, eles não hesitam em se arvorar, como anteriormente se disse, em juízes soberanos da história e da sociedade, condenando a malignidade do capitalismo e da organização política e institucional por ele estabelecida com o fervor do mais ardente missionário ou sacerdote. Um dos efeitos mais sinistros e problemáticos dessa excêntrica incoerência é o que veio a ser conhecido como “politicamente correto”, essa forma nefasta de policiamento moral e ideológico exercido pelos escritores e ativistas de esquerda sobre a sociedade e os comportamentos individuais, no intuito de enquadrar a todo custo os mais diferentes hábitos dos indivíduos (até mesmo aqueles de ordem linguística) na camisa de força dos códigos e protocolos reconhecidos pela mundividência esquerdista como os únicos verdadeiramente válidos.
No entanto, para entender de forma adequada toda essa extravagância, que torna o esquerdismo uma mistura anódina e incoerente de furor moralista e relativismo sociológico, é preciso dar um passo à frente e levar adiante o trabalho hermenêutico de decifração do impulso moral subjacente à eclosão dos movimentos de esquerda.  Fazendo isso, verificaremos então que o voluntarismo político, o fascínio pela violência, o fanatismo moral e o radicalismo ideológico que animam, de um modo ou de outro, todos os movimentos de esquerda podem ser interpretados como uma expressão perversa e brutalizada de uma forma de fé ou de páthos religioso bastante definido, qual seja: o messianismo. Eis aí um dado que diferentes analistas críticos, como N. Berdiaef,[14] K. Löwith,[15] R. Kirk [16] e Z. Loparic[17],  entre outros, perceberam há muito tempo, com perfeita clareza: o marxismo e o tipo de ativismo social e político dele derivado são não a expressão de uma visão puramente científica e filosófica dos fenômenos sociais e dos problemas a eles inerentes, mas a manifestação de uma religiosidade camuflada, de um messianismo secularizado e disfarçado que, sob as vestes da dialética, da sociologia e da economia política, pretende proclamar um novo evangelho acerca do sentido da história humana. Com efeito, pode-se dizer que o que é próprio da fé messiânica, de origem judaica, é, grosso modo, a confiança no sentido da história e a esperança no advento inevitável de um futuro Messias que, ao termo de toda peregrinação humana sobre a Terra, isto é, no fim dos tempos (éskhaton), aboliria, de acordo com os mais elevados desígnios da providência divina, a escravidão e a opressão do povo eleito, separando os justos dos pecadores e restaurando o antigo estado paradisíaco que fora perdido com a queda resultante do pecado original. Ora, o marxismo se apropria do páthos escatológico presente na esperança messiânica judaica e originária, páthos que alimenta sua fé numa futura redenção do homem e no fim definitivo do reino da injustiça e do mal, mas o encerra na pura imanência da história ou do tempo presente (no âmbito do saeculum, como diziam os antigos teólogos), cancelando, em nome de um violento e audacioso ateísmo, toda e qualquer referência à providência divina e a uma ordem sobrenatural. Em outras palavras, o marxismo mundaniza a crença messiânica, convertendo-a em uma escatologia ateia de caráter puramente temporal ou secular, que, crendo na marcha inexorável da história para a sociedade comunista perfeita, prevê o fim dos males humanos neste mundo.[18] Esse elemento dá ao marxismo todas as feições de uma religião às avessas (fato que levou R. Aron a qualificá-lo, numa fórmula certeira, como o “ópio dos intelectuais”) e explica porque o ativista de esquerda, de ontem e de hoje, se veja, muitas vezes, como uma figura ungida pela história e portadora de uma mensagem salvífica de libertação dos homens, a qual é destinada, como tal, a conduzir a humanidade à terra prometida da justiça, da paz e da verdadeira liberdade. Analisando o pensamento de Marx contido no Manifesto do partido comunista, Löwith apreendeu com grande acuidade esse ponto inerente ao marxismo original, formulando-o da seguinte forma:
O processo completo da história, tal como ele é exposto pelo Manifesto comunista, reflete o esquema geral da interpretação judaico-cristã da história como advento providencial da Salvação direcionada para uma consumação última do sentido. O materialismo histórico é uma história sagrada formulada na língua da economia política. O que parece ser uma descoberta científica que se poderia, à maneira do “revisionismo” marxista, despojar de sua roupagem filosófica e de sua tonalidade religiosa, está repleto, da primeira à última frase, de uma fé escatológica que, por seu turno, condiciona toda veemência e o alcance das afirmações particulares. Não é possível demonstrar cientificamente a visão da vocação messiânica do proletariado nem entusiasmar milhões de partidários por meio do simples estabelecimento dos fatos.[19]

Na esteira de Loparic, acreditamos que essa forma de encarar a política e a vida social contém em si uma periculosidade intrínseca (da qual o neoesquerdismo contemporâneo está longe de se encontrar imune), pois tal mistura de entusiasmo filosófico, radicalismo ideológico e messianismo profético é intrinsecamente liberticida e totalitária, na medida em que, ao pretender se realizar historicamente para efetivar de uma vez por todas a redenção ou completa emancipação do homem no tempo, não pode deixar de gerar o fanatismo que, com um temível e avassalador furor destruens, leva de roldão a sociedade e suas estruturas,  promovendo o implacável aniquilamento de tudo aquilo que se lhe opõe (indivíduos humanos, inclusive). A história está aí para nos mostrar a veracidade dessas asserções, história essa que foi recentemente recapitulada por Robert Service, professor da universidade de Oxford, em sua monumental obra Camaradas: uma história do comunismo mundial.[20] O texto de Service  nos mostra, de fato, a partir de uma análise bem documentada das experiências de implantação do comunismo nas mais diferentes regiões do planeta, como a deriva para o despotismo, para a violência e para a constituição de um regime opressivo e autoritário não é um simples acidente histórico derivado de uma má aplicação da doutrina marxista ou comunista, um erro de execução que poderia ser corrigido em experiências ulteriores, mas, antes, algo que parece ser constitutivo dessa doutrina, cuja natureza seria, portanto, inerentemente tirânica, liberticida e sanguinária.  Trata-se de uma informação grave que é preciso propagar e sobre a qual devemos meditar, a fim de neutralizar a influência de um pensamento que, apesar de ter sido refutado pela história inúmeras vezes, exerce, à semelhança de um mito, um fascínio religioso e quase místico sobre as mentes daqueles que, vulneráveis ao apelo do messianismo secularizado, não conseguem se compreender senão como comissários ungidos pela história, encarregados do advento de uma sociedade nova, mais justa e igualitária.



[1] Cf. J. CROPSEY, ‘Karl Marx’. In L. STRAUSS; J. CROPSEY (eds.), History of Political Philosophy. Chicago: The University of Chicago Press, 1992, p. 808-813.
[2] Ver, por exemplo, N. BOBBIO, O conceito de sociedade civil. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Graal, 1994, e, numa perspectiva crítica mais contundente , O. de CARVALHO, A nova era e a revolução cultural: Fritjof Capra & Antonio Gramsci, Rio de Janeiro: IAL& Stella Caymmi, 1994.
[3] Cf., sobre isso, as explanações de R. SCRUTON, Pensadores da Nova Esquerda. Tradução Felipe Garrafiel Pimentel. São Paulo: É Realizações, 2014, p. 118-133.
[4] Sobre a concepção de sociedade civil em Marx como elemento equivalente à esfera econômica de um modo geral, ver J. CROPSEY, ‘Karl Marx’, p. 807.
[5] Cf. N. BOBBIO, O conceito de sociedade civil, p. 32-33. Ver também o que o mesmo autor diz sobre o assunto em Estado, governo e sociedade. Para uma teoria geral da política. Tradução Marco Aurélio Nogueira. São Paulo, 2010, 16ª. reimpressão, p. 37-41.
[6] R. SCRUTON, Pensadores da Nova Esquerda, p. 126-127.
[7] Ver, sobre isso, A. BLOOM, The Closing of the American Mind. How Higher Education Has Failed Democracy and Impoverished the Souls of Today’s Students. New York: Simon & Schuster Paperbacks, 1987, p. 217-226.
[8] Cf. D. DOMBOVSKY, Nietzsche’s Machiavellian Politics. New York: Palgrave Macmillan, 2004, sobretudo as p. 1-66; 101-130; K. ANSELL-PEARSON, Nietzsche como pensador político.  Uma introdução. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p. 17-26; 161-175.
[9] Ver, mais uma vez, K. ANSELL-PEARSON, Nietzsche como pensador político, p. 19-20.
[10] R. SCRUTON, Pensadores da Nova Esquerda, op. cit., p. 15.
[11] J. F. MATTEI, A barbárie interior. Ensaio sobre o i-mundo moderno. Tradução de Isabel Maria Loureiro. São Paulo: Editora Unesp, 2002, p. 297-298.
[12] Sobre o fascínio da violência no marxismo original, ver também o que diz H. ARENDT em Entre o passado e o futuro. Tradução de Mauro W. Barbosa de Almeida. São Paulo: Perspectiva, 1997, p. 48-50. Nessa passagem, H. ARENDT, de fato, chama oportunamente nossa atenção para a glorificação da violência como “parteira da história” explicitamente enunciada por Marx, glorificação que abriga em si uma logofobia fundamental e que rompe decididamente com a visão tradicional da política (de matriz grega), para a qual, como se sabe,  a esfera da política se identificava integralmente com o espaço das relações mediadas pelo discurso (lógos) e voltadas para a busca da persuasão (peithó) e do consenso, excluindo, pois, de seu interior, a força, a coerção muda e a violência como procedimentos essencialmente antipolíticos. Nas palavras de ARENDT (p. 50): “A glorificação da violência por Marx continha portanto a mais específica negação do lógos, do discurso, a forma de relacionamento que lhe é diretamente oposta e, tradicionalmente, a mais humana. A teoria das superestruturas ideológicas, de Marx, assenta-se, em última instância, em sua hostilidade antitradicional ao discurso e na concomitante glorificação da violência”.
[13] Como viu A. BLOOM, The Closing of The American Mind, p. 25-43, esse relativismo sociológico e cultural se converteu no éthos mesmo de nosso tempo,  dominando o mundo acadêmico e a sociedade de um modo geral.
[14] N. BERDIAEF, Las fuentes y el sentido del comunismo ruso. Tradução Vicente Mendivil. Buenos Aires: Editorial Losada, 1959, p. 128-129; 165-172.
[15] K. LÖWITH, Histoire et salut. Les presupposés  théologiques de la philosophie de l’histoire. Tradução de Marie~Christine Challiol-Gillet, Sylvie Hurstel et Jean-François Kevérgan. Paris: Gallimard, 2002,  p. 57-78.
[16] R. KIRK, A política da prudência. Tradução Gustavo Santos e Márcia Xavier de Brito. São Paulo: É Realizações, 2013, p. 91-98.
[17] Z. LOPARIC, Heidegger réu.  Um ensaio sobre a periculosidade da filosofia. Campinas: Papirus, 1990, p. 109-160.
[18] Como viu M. ELIADE, Le mythe de l’éternel retour. Archétypes et répétition. Nouvelle édition revue et augmentée. Paris: Gallimard, 2009 [1989], p. 167-168, essa concepção constitui uma característica decisiva do pensamento de Marx acerca do processo histórico e, na medida em que ela projeta a possibilidade de uma futura redenção ou salvação do homem no tempo, funciona, no marxismo, como  um poderoso expediente para tentar controlar o “terror humano diante da história”.
[19] K. LÖWITH, Histoire et salut, p. 70
[20] R. SERVICE, Camaradas: uma história do comunismo mundial. Tradução Milton Chaves de Almeida. São Paulo: Difel, 2015.
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Autor Unknown

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